O medo

Há alguns anos eu falo deste assunto com as pessoas mais próximas, da (minha) necessidade de exorcizar o medo, seja como for e seja ele qual for...

O mundo que nos cerca é regido pelo medo nas suas formas mais sorrateiras. Infelizmente, isso começa muito cedo em nossas vidas, tão logo começamos a perceber o mundo que nos rodeia, assim que perdemos um pouco da nossa “virgindade". Quando criança, ainda inconscientes dos pseudo-perigos que nos rodeiam, o mundo tem definitivamente uma cor diferente. Pouco a pouco, à medida que o que eu associo com medo começa a se tornar parte da nossa vida, tudo muda.

Tentei me lembrar da primeira vez que fui confrontado com o medo e é impressionante como isso aconteceu cedo. O medo dos nossos pais, a nossa salvação, as pessoas mais importantes em nossas vidas. Como é esse medo? É o medo de quebrar os brinquedos, de não comer tudo o que nos foi servido, de rasgar os livros, de destruir o aparelho de som do pai, de cometer erros, de sermos nós mesmos, só porque os pais vão brigar (quando não nos batem).

Mais tarde esse medo se torna mais refinado, é o medo dos colegas que não conhecemos, dos professores, dos atos falhos, da aceitação dos outros (especialmente quando se é adolescente, esse é um péssimo momento a passar...). Depois chegam os anos da universidade, a pressão para ter boas notas, a consciência (e o medo) do que o futuro reserva, o primeiro relacionamento "sério", a primeira batalha com os demônios do passado, a entrada no mercado de trabalho (com a dose de stress que isso representa), o casamento, os filhos (momento de terror, mesmo para aqueles que sempre desejaram ter filhos) e a sua dose de dúvidas - não sei como fazer, comida e fraldas, chupetas com velocidade ajustável, as 1001 dicas de 1001 pessoas diferentes, quase todas contraditórias – a vida de casal, o trabalho, o constante “será que dou conta...

E depois existe o “outro” medo, bem mais dissimulado, destilado gota a gota pela vida nas fantásticas sociedades urbanas, o medo do dia-a-dia amplificado pela fictícia imparcialidade dos meios de comunicação em massa (TV, rádio, jornais, revistas, e agora Internet), os ladrões / estupradores / assassinos / ladrões que parecem sempre bater na porta dos “outros”, mas que nos obrigam a buscar abrigo sob um fino manto de protecionismo exagerado, as guerras que parecem tão distantes e ao mesmo tempo tão perto, um medo intrinsecamente enraizado na nossa vida de todos os dias, como um antigo vício que não conseguimos largar, o medo do estrangeiro, do que é estranho para nós... Para mim que tenho um filho e queria ter mais, é um pesadelo. A sensação de ter feito a pior imbecilidade do mundo quando decidi trazer esta criança para este mundo tão assustador. E a política (sim, sim. Só um pouquinho...), os políticos em quem ninguém acredita mais (exceto a minoria beneficiada direta ou indiretamente), escândalos de corrupção em todos os países (sim, eu vivi e trabalhei em países suficientes para poder dizer que é uma realidade equitativamente universal) que decoram as nossas vidas como se isso tudo fosse parte de uma realidade paralela sobre a qual não temos mínimo controle. E nem vou falar em religião organizada (a religião segundo o homem) e a sua horda de deuses tiranos e vingativos, que mantém seus rebanhos na linha, graças a uma lista sem fim de promessas de infernos quentes e impiedosos para quem não obedecer ás regras dos diferentes livros disponíveis... Que loucura!

E tudo isso se aglomera num único medo, como um tumor que cresce inexoravelmente dentro de nós. E o mais estranho é quando atingimos aquele ponto em que perdemos a capacidade de distinguir um medo de outro, de separar um problema (que, na sua essência, tem uma solução) de um falso problema (que, na sua essência, não merece a nossa atenção), o momento em que,por causa dessa bola acida, perdemos a sensibilidade para o nosso maior diferencial: capacidade de raciocínio, de ser razoável, de se acalmar e ver que aquele monstro na nossa frente afinal só é a sombra (desproporcional) de uma pedrinha de proporção infinitesimal. Percebem o que quero dizer? Tentem fazer este exercício simples: façam uma lista (rápida, sem pensar muito) de tudo que vos assusta durante um dia. Depois analisem os itens da lista calmamente, um a um. Vão ver como os nossos mecanismos de "autodefesa" andam desregulados :D

Esta é um dos meus “combates”: não ter medo. Nunca. Isso dura há pouco mais de uma década. E gostaria de trazer mais trazer mais pessoas para essa causa. É uma sensação difícil de explicar - chamo de “inteligência do coração”, embora alguns acreditem que "o coração tem razões que a razão não entende”. Discordo. Para mim, esses dois órgãos estão intimamente ligados. Estou convencido de que se todos tivessem menos medo, o Mundo seria muito melhor do que é hoje...

Comentários

  1. Un des facteurs de sublimation de la peur est à mon avis l'éducation dans la capacité d'écouter l'autre, de nous mettre à sa place, de chercher à connaitre ses raisons, ses motivations. Sans être romantique - il y a a des personnes sournoises et méchantes -nous avons de plus en plus besoin de cultiver cela à l'intérieur de notre cercle raproché d'amis.

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  2. J'irais presque plus loin et dirais que c'est LA solution, surtout si on prend Éducation dans son sens le plus large, non-réduit aux ecoles, universités etc...

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  3. não tinha pensado o quanto o medo nos domina... penso nas exigências que fazemos a nós mesm@s e o medo de não realizarmos tudo que queremos... incrível como tememos o que pode vir a acontecer ou não vir acontecer (o mais porvável)!!!
    beijocas

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  4. Adorei o teu texto... vivo no medo, e também eu gostava de um dia conseguir viver sem ele.
    Ou pelo menos tentar combater a fera.
    Já lá dizia o Yoda “Fear is the path to the dark side. Fear leads to anger. Anger leads to hate. Hate leads to suffering.”.

    Mas é um bicho dificil de combater.

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  5. Sem dúvida que é. Cada um tenta encontrar as suas melhores ferramentas. No meu caso tento sistematizar as reações, como se fossem os 10 passos dos alcoolicos anónimos, sabes? Primeiro passo: parar e respirar fundo. Segundo passo: avaliar. Terceiro passo: tentar descobrir o melhor caminho. Quarto passo, e por aí adiante... Nem sempre é possível ter essa calma toda, mas sempre tento forçá-la ;)
    Ahh, as palavras sempre sábias do grande mestre Yoda! Sem dúvida...

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  6. Primeiramente quero parabenizar pelo texto, você se expressa muito bem. Eu também tenho estado a mais de uma década lutando para vencer o medo, e descobri que a raiz de todos os outros medos é o medo do desconhecido, o medo de ser extinto da existência, o não saber o que vem depois da morte. Isso é terrível e assombra qualquer ser que tenha raciocínio. Acredito que se vencermos este medo, todos os outros medos caem por terra.

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  7. Oi Thiago! Muito obrigado pela sua visita e comentário. Não tinha pensado nesse temor supremo de ser extinto. Também faz sentido, claro. Até esse momento chegar a gente tem que lidar com os outros medos todos, não é? Mas bom, se aqui estamos para falar quer dizer que nos temos saído relativamente bem ;)
    Volte sempre!

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  8. Eu acho que muitos dos nossos medos estão associados à falta de auto-confiança. Este raciocínio também bate certo com o facto de que o destemido dura pouco tempo... Assim, de facto, devemo-nos concentrar mais em como reagir e vencer os medos do que na existência deles. Como um amigo comum diz: a incerteza lida-se com correção dinâmica. Ou em linguagem tecnocrata: é mais importante ter um plano do que ele correr bem!
    Em relação ao medo supremo eu já tenho isso em vias de resolução. O que me importa é quem cá fica e dependia ou tinha laços comigo! Eu nessa altura não terei mais medo, nem um!!

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  9. Sim Zé. Concordo que muitos estão associados à falta de auto-confiança. Mas acredito que sobre os medos que dependem de nós, ainda conseguimos lidar. Os piores são aqueles contra os quais não há plano ou correção dinâmica que resolva. Mas bom, essencialmente concordamos com o facto que é bom não nos deixarmos paralisar por eles :)

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